Bruxas de Pano

por Helena Leen

Galpão decorado com bonecas de pano e velas
O galpão decorado para a festa — início da noite de Halloween.

Eu nunca fui o que o pessoal chamaria de uma garota "normal". Sempre gostei de assuntos sobrenaturais, cresci ouvindo as histórias dos mais velhos sobre bruxas, lobisomens e outros seres da escuridão, mas por minha mãe ser uma mulher muito religiosa e cheia de respeito pelo sobrenatural, eu nunca sequer havia comemorado um Halloween até aquele dia.

Nasci em um dia 31 de Outubro, desde pequena muita gente sugeria como tema de minha festa de aniversário algo à rigor, mas minha mãe sempre dizia que não. No meu aniversário de 14 anos, em pleno início da adolescência, teimei que queria fazer uma festa de halloween, minha mãe pediu para que eu não mexesse com essas coisas, mas influenciada pelas amigas e cheia de curiosidade pelo proibido fui contra a opinião dela que lavou as mãos, me deixando comemorar meu aniversário do jeito que eu queria.

Para não horrorizar minha família, combinamos que faríamos os comes e bebes na área da cozinha, como sempre foi e deixaríamos a decoração para o galpão de casa que era uma parte em anexo onde guardávamos as tralhas que não usávamos habitualmente.

Eu sempre colecionei bonecas de pano, minha mãe as confeccionava com todos os tamanhos então eu tinha muitas, umas bem velhas que já estavam guardadas no próprio galpão e outras que enfeitavam as paredes do meu quarto. Minhas amigas decoraram o ambiente com panos pretos, luzes vermelhas e muitas bonecas, deixando no mínimo perturbador.

Alguém teve a brilhante ideia de colocar velas pelos cantos, deixando ainda mais macabro. Lembro da cara do meu pai quando entrou para dar uma olhadinha no que estávamos fazendo, nem preciso dizer que ele saiu horrorizado.

Bom, curtimos a festa ao som do show da Xuxa e paquitas, comemos os doces e salgados que minha mãe fez, cantaram parabéns para mim e depois das 20 horas quando já estava escuro, fomos para o galpão curtir a nossa baladinha. As meninas colocaram música no meu velho rádio cheio de luzes piscantes, um tipo bem conhecido no final dos anos 90 começo dos anos 2000 e a festa começou.

Dançamos, rimos, contamos histórias de bruxas e fantasmas, tudo estava perfeito, passei a vida acreditando que não devíamos nem sequer falar o nome desses seres em voz alta, e agora eu estava ali, rodeada por "bruxas de pano" como dizia minha vó, velas, vassouras e lençóis pendurados.

Lá pelas tantas alguém teve a péssima ideia de invocar os espíritos presentes e o que começou com uma das minhas amigas fingindo ser um espírito, se transformou em algo que marcou nossas vidas para sempre.

Usamos um tabuleiro de bolo e riscamos as letras com giz depois começamos as "invocações":

— Espíritos diversos que estão apreciando a festa, apresentem-se a nós — dizia Elisa rindo feito uma hiena.
— Hey, respeita os espíritos pelo menos... — dizia eu.
— Ok ok — concordava ela.
— Oh honoráveis espíritos curiosos, bruxas milenares, criaturas da escuridão... — sejam bem-vindos à festa!

Minhas amigas riam e se divertiam com perguntas que a própria Elisa respondia manipulando um copinho plástico sob o tabuleiro com letras dispostas em lugares estratégicos. Tudo estava indo muito bem, as meninas estavam se divertindo e enfim eu estava tendo uma festa “de gente grande” o que me garantiria uma certa popularidade, já que até então eu era vista como a menininha da mamãe e do papai.

Mas com o avançar das horas e as brincadeiras cada vez mais assustadoras, comecei a me incomodar.

Bonecas de pano ganhando vida e dançando ao redor das velas
As bonecas de pano pareciam despertar sob a luz das velas.

Eduarda, minha vizinha, pegou a boneca Júlia, uma das primeiras que minha mãe havia feito para mim, colocou no meio do tabuleiro e começou a proferir palavras estranhas como se estivesse convidando o espírito a entrar no corpo da boneca.

— Acho que já está bom Elisa, melhor pararmos com isso... — dizia eu.
— Ah para Nandinha, você não está com medo? Ou está?

Na verdade eu não estava com medo, mas eu havia sido criada respeitando todas as criaturas do mundo espiritual, o que era uma brincadeira para os outros, para mim era uma falta de respeito.

Aquilo tudo estava me incomodando, mas eu não sabia como fazer com que parassem sem ser rotulada como infantil ou medrosa.

De repente um vento bem forte vindo não sei de onde, bateu a porta e ferrou com força, nos deixando trancadas no galpão. Seguidamente a luz vermelha começou a piscar e queimou, ficamos no escuro, apenas com o clarão das velas. No mesmo instante as risadas cessaram, todas as meninas, ao total umas 12 entre 14 e 16 anos começaram a se alvoroçar. Elisa, que era a mais velha, tentou manter a calma e correu até o disjuntor para ligar a luz do galpão, mas foi em vão, parecia ter sido um apagão total.

— Fernanda, chama a sua mãe. — uma das meninas pediu assustada.

Todas começaram a forçar a porta e chamar pelos meus pais.

— Tia Eleonora, Tio Eugênio... — gritavam apavoradas.

A movimentação fora do galpão parecia ter parado, era como se só houvesse aquele galpão no meio do nada.

Como se não fosse suficiente, uma brisa gélida começou a envolver os bonecos que estavam fixados na parede e eles colocaram-se de pé. À frente deles a boneca Júlia, com seus cabelos de linha preta caindo pelo rosto tapando os olhos de botões.

Os bonecos pareciam dançar em volta do tabuleiro e Júlia os liderava. Os lençóis rodopiavam, as bonecas de louça que não haviam sido convidadas para a festa também saíram dos armários antigos, e todos bailaram ao som de ossos chacoalhando, enquanto minhas amigas amontoavam-se no canto da porta aos gritos.

Eu fiquei imóvel, não gritava, não esboçava nenhuma reação, estava em choque com tudo o que estava acontecendo diante dos meus olhos.

Até que tomei a frente me aproximando do espetáculo, então elas pararam de dançar. Júlia veio meio que flutuando até mim, em minha direção quando chegou bem perto, falou:

Obrigada por ter nos convidado para a festa.

Quando a boneca falou as meninas gritaram em pavor, e minha mãe abriu a porta:

— Tudo certo por aqui meninas? — já está ficando tarde.

Nesse momento todas correram para fora, deixando minha mãe e os outros parentes surpresos, mas ainda assim acharam que era alguma brincadeira.

Os bonecos simplesmente estavam novamente em seus lugares, era como se nada tivesse acontecido, inclusive minha mãe disse que em nenhum momento tinha faltado luz.

Boneca de pano iluminada pelo amanhecer entre velas derretidas
O amanhecer trouxe silêncio e mistério ao galpão.

Depois daquele dia as meninas passaram dias sem falar umas com as outras, ninguém tinha coragem de tocar no assunto, pareciam todas se evitar.

Alguns dias depois eu fui atrás delas, uma a uma, conversamos e decidimos nos encontrarmos, todas juntas. Fomos até o galpão, pedimos desculpas pelas brincadeiras e decidimos nunca mais tocar no assunto, não contamos a ninguém, aquele se tornou um segredo nosso. Mesmo agora já adultas, cada uma tendo a sua vida, sua família, mas sempre existirá entre nós um olhar de cumplicidade.

Nesse dia aprendemos a respeitar o que existe em oculto, não mexer com o que não conhecemos e vejam só que interessante, depois daquele encontro reunimos todas as bonecas velhas que seriam jogadas fora e consertamos os rasgos, renovamos o visual e devolvemos um pouco de dignidade àqueles brinquedos que por alguns instantes serviram de casas para os excêntricos convidados da minha festa de Halloween.